Durante mais de três décadas, milhões de mulheres espanholas confiaram os seus segredos mais íntimos a uma conselheira radiofónica que julgavam ser uma matriarca sábia. Uma investigação recente recorda como o “Consultório de Elena Francis” não só era uma farsa, como funcionava como uma máquina de doutrinação moral do regime franquista, escrita, na sua maioria, por homens.
Por Redacção Gem-Digi
MADRID — Foi o maior fenómeno radiofónico de Espanha na segunda metade do século XX. Todas as tardes, durante 37 anos (1947–1984), a sintonia inconfundível do “Consultório de Elena Francis” parava o país. As mulheres, em particular, ouviam religiosamente os conselhos de uma voz calma, culta e segura sobre problemas conjugais, dúvidas domésticas e angústias sentimentais.
Contudo, investigações revisitadas recentemente pela imprensa espanhola, incluindo a Cadena SER, expõem a crua realidade por trás do mito: Elena Francis nunca existiu. A “conselheira” era uma personagem fictícia, interpretada por atrizes de voz aveludada, e as respostas — muitas vezes severas e submissas — eram redigidas por uma equipa de guionistas, maioritariamente homens.
O Arquivo do Esquecimento
A dimensão real desta operação de engenharia social só veio à luz em 2006, e continua a ser analisada hoje. Num episódio digno de um thriller, foram encontradas cerca de 100.000 cartas num estado de abandono total numa masía (casa de campo) em Cornellà de Llobregat, propriedade da família Fradera, criadora do programa.
As cartas, comidas pela humidade e poeira, revelaram o sofrimento oculto de gerações de mulheres sob a ditadura franquista: relatos de violência doméstica, violações, gravidezes indesejadas e solidão profunda.
Homens a ditar a moral feminina
O que choca na revisão deste caso não é apenas a inexistência da personagem, mas quem controlava a narrativa. Durante a fase mais influente do programa, as respostas eram escritas pelo jornalista e crítico taurino Juan Soto Viñolo.
Era um homem, fumador inveterado e cínico quanto ao consultório, quem ditava às mulheres espanholas que deviam “ter paciência”, “agradar ao marido” ou “não provocar”, validando uma estrutura patriarcal rígida.
”A Elena Francis era uma voz de autoridade que dizia às mulheres para aguentarem tudo. Se o marido batia, a culpa era muitas vezes atribuída à mulher por não ser suficientemente dócil ou cuidadosa no lar,” relatam investigações sobre o conteúdo dos guiões recuperados.
O Negócio por trás do Conselho
A origem do programa não era altruísta, mas sim comercial. O consultório nasceu para promover os produtos de beleza do Instituto Elena Francis. O esquema era simples: as cartas lidas no ar recebiam conselhos detalhados, mas todas as outras — as que não iam para o ar — recebiam uma resposta padrão por correio, invariavelmente sugerindo um creme ou tratamento da marca para “melhorar a autoestima” ou “reconquistar o esposo”.
O Legado de uma Ilusão
A Cadena SER e outros meios têm trazido a público a voz das mulheres que escreveram essas cartas, muitas das quais, hoje idosas, descobrem com amargura que a sua confidente era uma ficção.
O caso “Elena Francis” permanece como um documento histórico vital sobre a sociologia de Espanha no século XX, ilustrando como os meios de comunicação de massa foram utilizados para manter a mulher num papel de submissão doméstica, sob a capa de um ombro amigo que, na realidade, era apenas um guião bem interpretado.
Your blog is a true hidden gem on the internet. Your thoughtful analysis and engaging writing style set you apart from the crowd. Keep up the excellent work!